Aconselho a todos os que trabalham coros a guardarem esses textos de reflexões do maestro Carlos Alberto, pois não são tão fáceis de encontrar...
Reflexões em torno de
elementos básicos da Regência Coral
D. ANDAMENTO
E FRASEIO
A meu ver, toda peça tem seu
andamento ideal, aquele em que “cada nota dá tudo o que pode dar”, onde cada
peça da engrenagem está perfeitamente ajustada no todo. Acho que esse
“andamento ideal” é relativo, mas, “numa pequena faixa”, pois o andamento está
também relacionado com algumas variáveis, tais como a acústica o tamanho e a
capacidade técnica do coro. Numa acústica “para mais”, tendente a conservar o
som pela quantidade de ressonância da sala, um andamento rápido trará como
resultado uma superposição sonora vulgarmente denominada “embolação”. Numa
acústica seca, ao contrário, é difícil sustentar um andamento lento, pois as
relações entre os sons se perdem ou ficam inconsistentes. (Acústicas “para
mais”: certas igrejas ou ambientes amplos abobadados, em pedra, concreto, vidro
ou formas que produzem “eco”. Acústica para “menos”, “secas”: auditórios de
rádio ou TV, tratados para não terem “retorno” ou ressonância, ou todos aqueles
tratados com material acústico absorvente, assim como os palcos abertos em cima
e sem defletores de som superiores, salões com muito tapete, cortina,
estofamento, materiais absorventes. E, o pior de todos: “ao ar livre”. Fujam de
aceitar compromisso em praça pública, ao ar livre, se não forem favorecidos por
uma concha acústica ou por um ambiente de altas paredes em torno. Cantar à
noite, numa rua estreita de Ouro Preto, entre grandes casarões, tudo bem, a
ressonância é deliciosa. O mesmo não acontece na Praça dos Três Poderes, em
Brasília... Aliás, este assunto mereceria um estudo à parte, tão importante é o
aspecto acústico, em se tratando de apresentações corais.
Para encontrar o andamento ideal de
uma peça devemos partir de uma pesquisa que deverá ser mais complexa na medida
em que as indicações forem menos precisas, o que em geral sucede na medida em
que recuamos no tempo. Os compositores modernos costumam ser bem precisos,
inclusive com indicações metronômicas ou de minutagem. O mesmo não acontece com
os antigos. Da Renascença para trás, só uma análise detalhada da partitura nos
levará a uma aproximação com o andamento ideal. Porém, cuidado: há revisores
que pretendem fazê-lo por nós, e o fazem muito mal. Indicações de intensidade
(f, ff, p, pp, cresc., dim., etc.) ou agógicas (rall., accel., rit., etc.) ou
de andamento, seja com a terminologia tradicional (allegro, andante, adágio,
presto, etc.), seja com minutagens ou com dados metronômicos, se são
discutíveis no século XVIII, da Renascença para trás, então, certamentte
pode-se considerar obra de revisores, na maior parte falseadores do estilo.
Quando nada, refletem versões pessoais, ainda envoltas nas concepções
individualistas do Pós-Romantismo, incapazes de compreender a simplicidade e
limpidez da música renascentista. No Renascimento e nas épocas anteriores, não
existia compasso, nem se fazia partituras com a superposição vertical (gráfica)
das vozes. Escrevia-se cada linha melódica separadamente e era música
“mensurada”, isto é, respeitava-se a duração das notas pelas figuras, mas não
havia a barra de compasso. Assim, os apoios (tesis) não eram regulares como no
compasso (apoio no tempo “um”), mas dependiam exclusivamente do texto
literário: os apoios eram os das sílabas tônicas. Na polifonia da Renascença,
onde as linhas melódicas são tão independentes, não coincidindo as palavras nem
a curva melódica, cada voz fica então com seus apoios tônicos e fraseio
individuais. Riqueza rítmica e independência tais entre as vozes constituem o
que de mais fascinante nos legou essa “época de ouro” do canto coral.
Em qualquer época, porém, há o
aspecto fenomenológico ligado ao andamento: no tempo ideal, tudo se ajusta. Na
medida em que apressamos, começa a não haver tempo suficiente para a
assimilação de cada elemento musical. Ao contrário, se o andamento se torna
devagar demais, as relações entre os elementos começam a se perder, a música
fica “arrastada”, a mensagem não chega ao ouvinte, pois seu aparelho auditivo
não sente mais aquele “fio condutor” que leva a “tensão”, as “energias sonoras”
para diante. Neste caso, a música não se “constrói”, porque a estrutura não se
arma, os “tijolos” ficam separados, não há “cimento” que os ligue... É verdade
que um grande regente, com um excelente conjunto, consegue, às vezes, versões
extraordinárias, explorando ”as extremas” desse flexível “andamento ideal”,
isto é, fazendo mais rápidos os andamentos rápidos, evitando a “embolação” por
meio de uma articulação virtuosística e uma transparência ou leveza sonora
resultantes de muita técnica e preparo, ou alargando os andamentos lentos sem
perder a “tensão”, ao contrário, sustentando-a através de uma “linha de canto”
muito bem mantida, criando aquela atmosfera que prende o auditório quase que em
suspense. Transpondo para a linguagem sinfônica, é o que Furtwangler fazia com
a “Marcha Fúnebre” da 3ª. Sinfonia de Beethoven. Mas, são coisas dos “grandes”.
Querer imitá-los, sem ter seus recursos, pode ser fatal.
Ainda no tópico sobre ANDAMENTO, uma
reflexão sobre arranjos de música brasileira: essa conhecemos, ou podemos
pesquisar com mais facilidade. Primeiro, escolher ou fazer um arranjo que não
deixe perder os característicos originais da música, ou seja, o caráter que tem
no ambiente onde surgiu. Sua colocação em linguagem coral deve ser tão hábil
que mantenha a mesma espontaneidade, por exemplo, da mesma canção cantada por
uma só voz com acompanhamento de violão. Isto vale, não só para a densidade
harmônica, quanto para o andamento. Um arranjo muito denso pode impedir um
andamento semelhante ao de suas origens, mas muitas vezes é o regente o único
responsável ...). Não tem sentido uma canção que, ao violão, é cantada com
leveza, brejeira, saborosa, soar no coro como uma “marcha fúnebre”, às vezes
ainda com a grotesca sobrecarga dos “efeitos gratuitos”.
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